Uma idosa de 61 anos que trabalhava como empregada doméstica em situação análoga à escravidão foi resgatada por uma equipe da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) em uma casa no Alto de Pinheiros, bairro nobre da Zona Oeste de São Paulo. Ela não recebia salários desde 2011, não tinha férias e 13° salário.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho em São Paulo (MPT), que solicitou o mandado de busca e apreensão, a idosa estava sendo vítima de agressão, maus tratos, constrangimento, tortura psíquica, violência patrimonial e exploração do trabalho por seus empregadores.
Uma das empregadoras foi presa no local, mas foi liberada após pagar fiança de R$ 2,1 mil. A doméstica trabalhava para a família desde 1998. A inspeção foi motivada por denúncias recebidas pelo Disque 100.
Ao chegarem na residência, os policiais encontraram a empregada doméstica morando em um depósito de tralhas e móveis no quintal da casa, dormindo em um sofá velho, sem receber alimentação, sem acesso a banheiro e sem salário regular. O que a equipe encontrou no local e os relatos ouvidos de testemunhas confirmaram a situação de “trabalho escravo moderno”, agravada pela vulnerabilidade da vítima.
Em depoimento, moradores vizinhos do imóvel informaram que a doméstica trabalhava para os moradores da residência praticamente em troca da moradia, que por várias ocasiões a ajudavam com alimento e itens de higiene e relataram episódios de discussão e de omissão de socorro.
Após o resgate da trabalhadora, a procuradora do MPT Alline Pedrosa Oishi Delena entrou com uma ação cautelar contra três empregadores pedindo pagamento imediato do valor correspondente a um salário-mínimo por mês à vítima até o julgamento final do processo. Também solicitou à Justiça do Trabalho a expedição do alvará judicial para que a vítima possa fazer o saque junto à Caixa Econômica Federal do seguro-desemprego, assim como o bloqueio do imóvel para futuro pagamento de verbas trabalhistas e indenizações.
Os pedidos de urgência visam garantir a subsistência da vítima até o julgamento final do processo. “Não faz sentido algum que após o resgate a vítima acabe em uma situação ainda pior do que já estava, pois além de tudo, desabrigada, e vivendo da boa vontade de vizinhos”, comentou em nota a procuradora.
De acordo com Alline, o quadro se agrava no contexto da pandemia de Covid-19, pois a idosa é do grupo de risco e “porque qualquer trabalho e meio de subsistência tornam-se muito mais difíceis de serem conseguidos nesta época. Dessa forma, precisamos garantir que as necessidades humanas básicas sejam disponibilizadas à trabalhadora, que se encontra em extrema vulnerabilidade, sem casa, sem comida, sem renda, dependendo exclusivamente da ajuda dos vizinhos do local”, explicou Alline.
Em decisão liminar, a juíza que conduz o caso acolheu os pedidos de bloqueio de bens e de expedição do alvará para o recebimento do seguro-desemprego, deixando para após novas oitivas a decisão sobre o pagamento de um salário mínimo por mês até o julgamento final do processo.
Segundo a procuradora, o bloqueio de bens é necessário porque a doméstica é credora de verbas trabalhistas decorrentes de sua rescisão indireta em decorrência do resgate, bem como verbas não pagas no curso do contrato de trabalho, além de danos materiais em morais, tanto individuais como coletivos. “Em um cálculo inicial, esse valor pode chegar a mais de R$ 500 mil reais”, conta Alline.
Histórico
De acordo com o MPT, a trabalhadora foi contratada em 1998 por uma executiva do ramo de cosméticos, sem registro em carteira, sem férias ou 13º.
Nos primeiros anos, a doméstica não morava no emprego, mas em 2011, segundo depoimentos colhidos, a casa em que morava foi interditada e a patroa ofereceu para que ela fosse morar na casa de sua mãe, onde ficou cerca de cinco anos.
De acordo com depoimentos, naquele mesmo ano a patroa passou a residir em outra cidade, mas manteve seus serviços para servir à uma das filhas que continuou na casa. A partir de então, a doméstica passou a receber cerca de 400 reais, esporadicamente, ainda que continuasse a realizar todos os serviços, exceto cozinhar.
Cerca de pouco mais de dois anos depois, a filha da patroa foi morar no exterior e uma outra filha e seu então namorado, atual marido, mudaram-se para a casa de Alto de Pinheiros, ficando responsáveis pelo pagamento do salário da doméstica, que passou a receber o valor de R$ 250, que lhe era pago em dinheiro, no início do mês.
De acordo com depoimentos, a doméstica trabalhava de segunda a sexta-feira na casa da patroa e, paralelamente, cuidava da casa da mãe da patroa, onde morava, fazia a limpeza e pagava as contas de água e luz da residência porque temia que fossem cortadas.
No ano de 2017, a casa da mãe da patroa foi vendida e a doméstica passou a morar no depósito no quintal da casa onde foi encontrada.
Desde o decreto da pandemia, os patrões não permitiram mais a sua entrada na casa, tendo sido mantido trancado o quintal e o banheiro, impedindo que a vítima realizasse suas necessidades sanitárias. Para o banho, a idosa usava um balde e caneca. Segundo consta em depoimentos, em maio a doméstica sofreu um grave acidente de trabalho e não foi socorrida, tendo passado uma semana com dores e hematomas, sem receber alimento ou cuidados.
No dia 16 de junho, os empregadores mudaram-se para Cotia sem comunicar a vítima, que foi abandonada no quintal. Ao chegarem ao local no dia 18, uma equipe da Polícia Civil entrou na casa enquanto outra foi até o novo endereço dos patrões em Cotia. Eles foram localizados via sistemas da polícia, já que nem um número de telefone, nem um endereço fora deixado com a empregada doméstica.
Em seu depoimento, a moradora confirmou que a doméstica dormia, desde o ano de 2017, no cômodo destinado a depósito e que realmente não tinha conhecimento de como ela fazia para o usar o banheiro para necessidades e banho. Os réus negam a relação de emprego, alegando que no passado a vítima trabalhava esporadicamente, como diarista, mas que nos últimos anos não mais fazia trabalhos domésticos.
A proprietária do imóvel afirma que a vítima chegou a morar “de favor” na casa de sua mãe e que quando a casa foi vendida, por pena, a acolheu enquanto ela procurava por um lugar para onde eventualmente se mudaria. Após pagamento de fiança, a ré foi liberada. A proprietária da casa, assim como sua filha e o marido desta, os atuais moradores da residência, responderão por omissão de socorro, abandono de incapaz e por redução a condição análoga à de escravo.
O caso está sendo investigado pela 1ª Delegacia de Proteção à Pessoa.